[Livro] Como Proust pode mudar sua vida (1997)/ Alain de Botton - Parte 3

 


Como abrir os olhos


Os grandes pintores têm o poder de abrir nossos olhos por causa da receptividade incomum de seus próprios olhos para aspectos da experiência visual, para os jogos de luz no fundo de uma colher, a maciez fibrosa de uma toalha de mesa, a pele aveludada de um pêssego ou os tons rosados da pele de um idoso.

A felicidade que pode surgir quando lançamos um segundo olhar sobre algo é essencial para a concepção terapêutica de Proust, pois revela até que ponto nossa insatisfação pode derivar da nossa incapacidade de olhar apropriadamente para nossa própria vida, e não de uma deficiência inerente ao nosso cotidiano. A apreciação da beleza de pães não impede nosso interesse por um castelo, mas, se não formos capazes de apreciá-los, devemos questionar nossa capacidade geral de apreciação.

A memória voluntária, a memória do intelecto e dos olhos, nos [dá] apenas fac-símiles imprecisos que se parecem tanto com o passado quanto os quadros de pintores ruins lembram a primavera (…) Então, não acreditamos que a vida é bela porque não a recordamos, mas, se sentirmos o sopro de um aroma há muito esquecido, ficamos repentinamente inebriados. Da mesma maneira, achamos que não amamos mais os mortos porque não os lembramos, mas, se por acaso nos deparamos com uma velha luva, caímos em prantos.


Como ser feliz no amor


 Nós apenas conhecemos de verdade o que é novo, o que repentinamente apresenta à nossa sensibilidade uma mudança de tom que nos abala, o que o hábito ainda não substituiu por pálidos fac-símiles.

o fato de haver algo fisicamente presente está longe de constituir a circunstância ideal para notá-lo. De fato, a presença talvez seja o próprio elemento que nos estimula a ignorar ou a negligenciar tal coisa, pois achamos que já fizemos todo o trabalho simplesmente garantindo o contato visual.

Se um longo relacionamento com um amante muitas vezes gera tédio, uma sensação de conhecer bem demais essa pessoa, o problema pode, ironicamente, ser que não a conhecemos suficientemente bem. Enquanto a novidade inicial do relacionamento não deixa dúvidas quanto à nossa ignorância, a subsequente presença física confiável do amante e as rotinas da vida em comum podem nos iludir e nos fazer pensar que alcançamos uma familiaridade genuína e maçante, mas, na verdade, é possível que se trate apenas de uma falsa sensação, fomentada pela presença física,


Para Proust, uma injeção de ciúme é a única coisa capaz de resgatar um relacionamento arruinado pelo hábito. Um conselho para quem deu o passo fatal da coabitação: Vivei inteiramente com a mulher e não vereis mais nada do que vos fez amá-la; é certo que os dois elementos desunidos, pode o ciúme ajuntá-los novamente.

Basta que receemos perdê-la para esquecermos todas as outras. Seguros de a conservar, comparamo-la a essas outras, que imediatamente preferimos a ela.

Como abandonar os livros


(...) que todos os livros podem fazer por seus leitores; isto é, ressuscitar aspectos valiosos, embora menosprezados, da experiência, os quais estavam até então entorpecidos pelo hábito e pela falta de atenção.

(…) Não há maneira melhor de nos conscientizarmos a respeito do que nós mesmos sentimos do que tentando recriar em nós mesmos o que um mestre sentiu. Nesse esforço profundo, é nosso próprio pensamento, junto com o do nosso mestre, que trazemos à luz.

Devemos ler livros escritos por outras pessoas a fim de conhecer o que nós sentimos; são nossos próprios pensamentos que deveríamos desenvolver mesmo que seja com a ajuda do pensamento de um outro escritor. Portanto, uma vida acadêmica plena exigiria que julgássemos que os escritores que estudamos articularam em seus livros uma quantidade satisfatória das nossas próprias preocupações e que, ao entendê-las por meio de tradução ou comentário, estivéssemos simultaneamente entendendo e desenvolvendo as partes espirituais significativas daqueles autores.

E é aí que reside o problema de Proust, pois, na sua visão, os livros não poderiam nos conscientizar de muitas coisas que sentimos. Talvez pudessem abrir nossos olhos, nos sensibilizar, intensificar nossos poderes de percepção, mas, em dado momento, esse efeito cessaria, não por coincidência, não de maneira ocasional, não por má sorte, mas inevitavelmente, por definição, pelo forte e simples motivo de que não somos o autor. Chegaria um momento, em todo livro, no qual sentiríamos que algo é incongruente, mal-entendido ou restritivo, e isso nos daria a responsabilidade de deixar nosso guia para trás e de continuar nossos pensamentos sozinhos.

Uma das grandes e maravilhosas características dos bons livros (que nos permite ver o papel ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura pode desempenhar em nossa vida espiritual) é que, para o autor, os livros podem ser chamados de “Conclusões”, mas, para o leitor, são “Provocações”. Sentimos fortemente que nossa própria sabedoria tem início quando a do autor termina e gostaríamos que ele nos desse respostas quando tudo o que ele é capaz de fazer é nos fornecer desejos (…) Esse é o valor, e também a inadequação da leitura. Transformá-la em disciplina é atribuir um papel grande demais ao que é apenas um incentivo. A leitura está no limiar da vida espiritual e pode apresentá-la a nós, mas não a constitui.

Contanto que a leitura seja para nós o instigador cujas chaves mágicas abriram as portas daqueles lugares recônditos de nós mesmos nos quais não saberíamos como entrar, seu papel em nossa vida é salutar. Por outro lado, ele se torna perigoso quando a leitura, em vez de nos despertar para os pensamentos próprios, tende a tomar seu lugar, quando a verdade não se configura mais para nós como um ideal que só podemos concretizar por meio do progresso íntimo do nosso próprio pensamento e dos esforços do nosso coração, mas como algo material, depositado entre as folhas de livros, como mel inteiramente preparado por outros e que só precisamos pegar das estantes das bibliotecas e experimentar passivamente em total repouso da mente e do corpo.

Transformar [a leitura] em disciplina é atribuir um papel grande demais ao que é apenas um incentivo. Ler está no limiar da vida espiritual e pode apresentá-la a nós, mas não a constitui. Até mesmo os melhores livros merecem ser abandonados.



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