[Livro] Como eu sobrevivi aos anos 90 (2018)/Danilo Nogy








  • fiz parte de uma geração em que ser nerd era motivo de chacota. Os nerds eram um alvo fácil e corriqueiro em todas esferas da sociedade: nas ruas, na escola, no ônibus e até no catecismo. Hoje em dia ser nerd é colecionar action figure e pagar 100 reais num quadrinho de capa dura edição de luxo.







  • O medo de apanhar de um babaca mais velho ou mesmo da cinta da minha mãe são coisas que sempre me acompanharam. Assim como os pequenos medos da infância que me perseguiram durante anos. Não bastava ser medroso na vida real, eu tinha uma vasta gama de pavores na ficção. Verdade seja dita: alguns personagens, programas de tevê e até brinquedos botavam medo em qualquer criança de coração puro.







  • No fim das contas, vivemos esse grande paradoxo nos anos 90 que ainda perdura sem solução: nunca um ser humano pôde constatar se a faca Ginsu corta ou não uma meia Vivarina, porque não existia milionário pra isso na época.







  • Taffman E - O gosto, indefinível, resultava da suspeita mistura de açúcar, vinho, mel, gengibre, guaraná, cravo-da-índia, pedaço de madeira com ferpa e sabe Deus mais o quê. Prometia dar vitalidade e força ao homem moderno. Pois a criança moderna sempre dava jeito de tomar um desses, quando alguém comprava. Na prática, uma bebida doce, esquisita que, sinceramente, acho que não serve pra nada. Nem pra recarregar o HP e MP.







  • Ao contrário da exuberância meio cafona dos anos 80, a década de 90 teve tantos estilos e foi tão confusa em termos estéticos que, no fim das contas, não teve moda nenhuma. (...) É meio bizarro elaborar isso e não quero que me agridam na rua, mas a moda noventista foi uma mistura que mais ou menos deu certo e mais ou menos deu errado da tribo techno com a tribo grunge , mais os VJs da MTV, pitadas de Spice Girls e Backstreet Boys, resultando num cruzamento de Um maluco no pedaço e As patricinhas de Beverly Hills .









  • O grunge , mais do que o gótico, o metal e o new wave , na década anterior, foi uma espécie de “anticomportamento”, que por consequência influenciou uma “antimoda”. Talvez não de um jeito muito consciente, mas a moda grunge consistia numa preguiça da moda, numa falta de preocupação com ela. Então os garotos e as garotas vestiam uma bermuda longa e xadrez, amarravam uma blusa na cintura, cobriam tudo com uma camiseta larga e estávamos conversados.








  • Lembro-me perfeitamente também da primeira vez que assisti a Anos incríveis . Foi amor à primeira vista. Que seriado profundo, bonito, inteligente. Os anseios do primeiro amor na escola, o medo de apanhar de algum babaca na rua, as inseguranças com o corpo, os laços e embaraços com a família. Tudo em Anos incríveis era facilmente adaptado para nossa realidade, para os nossos dias difíceis, os conflitos de amizade, as lições de afeto e respeito. Abençoada seja a geração que cresceu com Kevin Arnold.








  • Foi também assistindo à TV Cultura que eu passei a me interessar por seriados. Mas nem só das séries gringas (e maravilhosas) como Friends , Seinfeld , Blossom , Um maluco no pedaço e Barrados no baile viveram nossos televisores. Confissões de adolescente marcou não só o começo de carreira da Deborah Secco e de outras atrizes da série, como meus primeiros medos, receios e desesperos sobre o que seria essa tal adolescência. Fiz bem em me fingir de morto por enquanto. O Mundo da Lua foi outra maravilha produzida na época, e me fez perder noites de sono até ganhar meu próprio gravador de voz.








  • Foi no Glub Glub que aprendemos a amar desenhos que sequer tinham falas, como o antológico Pingu , o carismático pinguim que vivia com sua família no Polo Sul; ou o Zeca e Joca , a dupla atrapalhada que, acredite se quiser, teve origem na Tchecoslováquia. Isso sem falar nas mais diferentes animações que faziam nossa tarde mais feliz, como Os sete monstrinhos , que mais nos faziam rir do que assustavam; o covarde e igualmente engraçadíssimo Ernest, o vampiro ; a Pedra dos sonhos , com aquela abertura que dá vontade de chorar; o desenho do Doug – que ainda nem tinha ido pro SBT na versão da Disney –; o belíssimos Babar e tantos outros desenhos incríveis.








  • Além de olhar a gente, ela lavava, passava, limpava a casa toda e ainda fazia um delicioso “pão frito”. Assim chamávamos o pão com meia tonelada de margarina que a Lucélia preparava na frigideira com boas pitadas de sal. O famoso pão na chapa das padarias, só que sem a chapa. A gente não precisava nem pedir. Por volta das 3 horas da tarde, lá estava a Lucélia adentrando a sala com os deliciosos pães fritos e um gigantesco copo com Nescau gelado. Melhor refeição para assistir aos belíssimos desenhos animados da TV Cultura. Eu e minha irmã gostávamos de muitos, mas O pequeno urso era disparado o preferido.








  • Se por um lado a Manchete teve a audácia de trazer animes do calibre dos Cavaleiros do Zodíaco e Yu Yu Hakusho , e tokusatsus no nível de Jaspion , Changeman e Jiraiya para o Brasil – e felicidade geral da nação (volta, Manchete!) –, a Globo tinha Power Rangers , Samurai X , Monster Rancher , Dragon Ball Z , Digimon .








  • O quadro da banheira certamente foi o que mais marcou a indescritível saga do Gugu pelo SBT. Em todo programa, mulheres de biquínis minúsculos se engalfinhavam com marmanjos de sunguinha numa banheira. Alguns sabonetes eram jogados ali e então começava uma luta corporal sem precedentes. Seios saltando do biquíni, partes baixas escapulindo pela tangente e abraços eróticos eram rotineiros nessas disputas. Os ângulos das câmeras infiltradas em meio a tudo isso me fazem pensar que o apresentador queria competir mesmo era com a Sexta Sexy , que acabou virando Cine Band Privé . E olha que ele ganharia fácil.








  • A tevê também passou a servir como despertador, referência temporal para nós (se lembram do rádio relógio obrigatório em todo criado-mudo?). Quando acabava TV Colosso , por exemplo, era hora de almoçar (“Tá na mesa, pessoaaaal!”). Quando estava ali no meio de Os Trapalhões (as saudosas reprises que passavam durante semana), era um bom momento para inventar uma dor de barriga e, assim, tentar convencer sua mãe a deixar você faltar na escola (meu irmão às vezes utilizava essa técnica).







  • Nessa época, os doces ficavam naqueles balcões gigantescos do bar, às vezes rodeados de abelhas e outros insetos indefinidos. O balcão tinha um vidro pra que a gente pudesse ficar observando enquanto nossos olhos brilhavam. Era nossa vitrine. Os doces não tinham data de fabricação, de validade, lista de ingredientes, nada. Nem a Mãe Dináh poderia prever do que eram feitos aqueles doces. Eles simplesmente ficavam ali. Acho até que nasciam dentro daquele balcão de higiene duvidosa. Ninguém contestava ou achava estranho. Eu simplesmente chegava com algumas moedas e saía de lá com aqueles saquinhos cheios de teta de nega (aquele doce de merengue coberto com chocolate que hoje em dia é vendido na Kopenhagen pelo preço de uma cobertura no Guarujá), doce de abóbora de coração (o meu preferido até hoje), o suspiro colorido (e seus sabores que não mudavam, mesmo com uma enorme gama de cores diferentes), doce de bananinha (aquele que vinha num copinho de casquinha de sorvete fatalmente murcha e uma colherzinha de madeira). Por falar em sorvete, lembrei-me agora do bendito sorvete quente . 




  • Ou sorvete de maria-mole, que vinha com uma bexiga indecente de 2 centímetros por cima. A bochecha chegava a arder só de tentar encher aquela coisa. Os chocolates desses botequins, de tão horríveis, eram deliciosos. Eu adorava o guarda-chuvinha de chocolate e o interminável ritual de tentar abrir a embalagem sem quebrar a pontinha. Sempre quebrava. Moeda, bola de futebol, Papai Noel... tudo virou um esquisitíssimo chocolate hidrogenado com gostinho de manteiga, gordura vegetal e óleo Liza. Se bobear, nem cacau tinha.








  • Quantas tardes gostosas passei jogando Tony Hawk’s Pro Skater 2 . Quando tava difícil passar de fase, eu criava meus próprios cenários e depois implorava pros meus irmãos jogarem neles. Eu jurava que eles jogavam porque curtiram minhas fases, mas na verdade faziam isso por obrigação mesmo. Aliás, o Tony Hawk’s foi responsável pela formação musical de muita gente, inclusive a minha, que tava mais acostumado a ouvir música nacional e abri os ouvidos pros gringos que tocavam no jogo. Se o CD estivesse riscado, tacava-lhe pasta de dente, virava o videogame de cabeça pra baixo e pronto. Seguia o jogo.








  • Ele era o único do bairro todo (e, na minha cabeça, da galáxia também) que tinha o mais novo videogame da Nintendo. Eu jurava que ele era milionário só por conta disso. Até porque, além do N64, ele tinha a coleção completa das estatuetas de ferro do Kinder Ovo.








  • Eu sabia o nome de todo mundo da minha rua, da rua de baixo e, também, da avenida de cima. Já nossas mães sabiam o nome até da terceira geração das vizinhas. Agora ninguém sabe quem é quem, quem é filho de quem; todo mundo se tranca em casa e qualquer pessoa circulando parece suspeita.








  • Por ironia do destino, a inovação digital usada nos CDs seria o fator da sua própria morte no final da década, com a chegada do Napster e da popularização do MP3. As fitas K7, além de compactas, tinham uma grande qualidade: nos ensinaram a criar playlists numa época em que a gente nem sonhava com Spotify, e nos mostraram como compartilhar músicas num tempo ainda sem MP3.








  • Assim como a mágica do fax, que enviava e recebia documentos com texto e imagem pela linha de telefone (?!), eu também nunca entendi a bruxaria dos mimeógrafos. Rodar aquela traquitana com álcool e dali saírem cópias na cor roxa era demais para a minha cabeça. Receber a folha molhada e sentir o cheiro de álcool que subia da prova de Matemática pode ter sido a primeira experiência no submundo das drogas de muita gente. Inclusive a minha.








  • Nunca vi um PC da Xuxa de perto, mas o que era aquele Game Boy? Meu Deus, aquilo parecia ser o sentido da vida (da minha vida, pelo menos). Um videogame pra jogar em qualquer lugar, imagina que surreal isso pra uma criança que tinha de visitar uma tia cujo nome nem sabia? As pilhas duravam menos que um capítulo de Caverna do dragão e era impossível enxergar aquela tela à noite, mas vamos combinar: era um Game Boy. É claro que eu, membro da classe menos favorecida, nunca tive um. Eu me contentava com um minigame daqueles pretos com botões amarelos, o Brick Game 999 games em 1. Ainda tenho esperança de que alguém vai me mostrar como desbloquear os outros 998, porque até hoje só achei o Tetris nele.








  • Estou falando dos Comandos em Ação. Hominhos (bonequinhos) articulados, uniformizados e tal, com mochilinhas e outros acessórios. Uma desgraça desses bonecos era que sempre – eu digo SEMPRE – o dedinho do camarada quebrava primeiro do que tudo, e daí o infeliz não podia mais segurar a arminha, o que o fazia se tornar um soldado sem nenhuma serventia para a guerra.








  • A geração que aprendeu inglês jogando Zelda sofreu pra se safar nos RPGs. Um dicionário surrado inglês-português, um caderno e uma caneta pra anotar coisas importantes: eram nossas únicas ferramentas numa época em que praticamente não existiam jogos em português. Aprendemos um novo idioma na marra. Sangue, suor e Start the Game . Afinal, ou você aprendia inglês para passar de uma determinada parte do game ou você abandonava aquele cartucho no fundo da estante (e pra funcionar depois só assoprando bastante a fita).








  • A essa altura, os fliperamas também provocavam grandes aglomerados de moleques entre 2 e 35 anos nos botecos da vida. Bem diferente do ambiente de comercial de margarina que os videogames caseiros sugeriam, os jogadores de fliperamas eram os malandros em miniatura que perambulavam pelos ambientes mais tenebrosos da cidade. Um fliperama com um The King of Fighters ‘97 rolando era o sonho de consumo de muitos. O detalhe é que quase sempre ele ficava entre umas 5 máquinas caça-níqueis de procedência duvidosa, rodeado de bêbados jogando truco, tomando cachaça e soltando fumaça de Derby na sua cara. Isso sem falar no risco de ser ameaçado pelo pivete mais alto, que, além de roubar suas fichas, ainda lhe metia um pontapé na bunda pra você ficar esperto.
















11 comentários:

  1. Genial demais esse texto! Eu chamo de "pequena História" as referências históricas sobre doces, programas de TV e tudo o que é citado e identificado no texto. E é mesmo História, memória das pequenas coisas e do comportamento. Mas preciso fazer uma correção: o doce que o autor chamou de "teta de nega" já era vendido na minha infância (nasci em 1950) pela Kopenhagen. Caríssimo, talvez preço de "cobertura no Guarujá", mas totalmente gourmet, embalado em papel manteiga e acondicionado em uma caixinha individual e delicioso. O nome era (é) "Nhá Benta".

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    1. "pequena História" - ótima expressão, vou copiar

      "Kopenhagen" - sabores incrivelmente caros e deliciosos. vc sabe escolher o que é bom :)

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  2. Como não se identificar? Programas da Tv aberta como marcadores de horários. Comida vendidas em bodegas sem vigilância sanitária. Os fliperamas, onde os malas roubavam nossas fichas e os donos não estavam nem aí. Fax, mimeográfo. Geografia baseada em rua de cima e rua de baixo. Tv Manchete, Glub Glub e demais programas da Tv Cultura... Doug antes da Disney!!! E o Beakman?
    Parece uma ótima leitura.
    Recordo com carinho. Mas... prefiro os tempos atuais.
    Abraços!

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    1. os tempos atuais são bem melhores
      a leitura é bem simples agradável, me impressiona a carga de memórias que ela liberou
      consegui lembrar de muita coisa lendo as experiência do autor
      Beakman era incrível

      abs!

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  3. "Nem pra recarregar o HP e MP."

    Como sou burro kkk, o que é isso?

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    1. são diferentes marcadores de energia em jogos de RPG (https://nordic-mythology.forumeiros.com/t79-sistema-de-hp-mp-dp#:~:text=%C3%89%20comum%20utilizarmos%20termos%20como,e%20magia%20de%20seus%20personagens.&text=%2D%20Com%20o%20significado%20de%20Pontos,de%20ataque%20de%20seu%20personagem.)

      é como se indicassem quanto o personagem pode sangrar ou atacar em termos gráficos ou matematicos na realidade simplificada dos jogos

      abs!

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    2. Adoro Taffman. Não dá carga em minha estamina. Mas ao espírito. Sabor de infusão único...

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    3. verdade, nutricionalmente não presta, mas tem um sabor único

      fora o prazer de ser transportado ao passado quando se prova

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    4. Era caro. Minha mãe nunca colocava no carrinho. Às vezes tínhamos dinheiro para comprar no mercado perto de casa. Taffman com algum pacote de salgadinho Elma. Bom demais...

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  4. Prefiro os anos 20, com a internet eu posso "visitar" os bons aspectos de anos que eu não vivi 50-60-70-80-90.

    Nos anos 90 o que devia ser ruim era a explosão do sertanejo, pagode e axé ruins, não tinha muita música boa no mainstream. Não tinha muito como descobrir outras músicas sem You Tube. Sem falar que por causa da Internet o acesso aos mais variados tipos de cultura era limitado.

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    1. nos anos 90 se ouvia música por meio de cds, lps, laser discs, cassetes - tinha muita coisa boa, mas muito menos acessível que hoje pq era caro.
      a televisão aberta era uma droga e nas rádios só jaba (isso não mudou)

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Memento mori...carpe diem!