22 julho, 2022

[Livro] A arte e a ciência de memorizar tudo (2011)

 

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Uma mera leitura não resulta necessariamente em aprendizado — um fato com o qual me confronto toda vez que tento lembrar o conteúdo de um livro que acabei de ler. Para realmente aprender um texto, deve-se memorizá-lo.


Ao abordar um texto ou um discurso, pode-se tentar lembrar sua essência ou tentar lembrá-lo literalmente. Quintiliano, o mestre romano de retórica, desprezava a memória verborum, sustentando que criar um vasto número de imagens não só era ineficiente, a partir do momento em que se exigiria um palácio da memória gargantuesco, como também instável. Se nossa memória para um discurso depender do conhecimento de cada palavra, então não apenas você terá muito mais para lembrar, como também, se esquecer uma única palavra, terminará aprisionado em um cômodo do seu palácio da memória olhando uma parede em branco, perdido e incapaz de continuar. Cícero concordava que o melhor meio de memorizar um discurso era ponto a ponto, e não palavra por palavra, empregando a memória rerum. Em De Oratore, ele sugeria que um orador, ao fazer um discurso, deve ter uma imagem para cada grande tópico que deseja cobrir e colocar cada uma dessas imagens em um locus. De fato, a palavra “tópico” vem do grego topos, lugar. (A locução “em primeiro lugar” é um vestígio da arte da memória.)


A poesia oral não era simplesmente um meio de contar histórias importantes ou adoráveis, ou de projetar a imaginação. Era, como defende o classicista Eric Havelock, “um repositório colossal de conhecimento útil, uma espécie de enciclopédia de ética, política, história e tecnologia que o verdadeiro cidadão devia aprender como o cerne de seu equipamento cultural”.


Em uma cultura dependente da memória, é fundamental, nas palavras de Walter Ong, que as pessoas “tenham pensamentos memoráveis”. O cérebro tem mais facilidade de se lembrar do que é repetitivo, rítmico, rimado, estruturado e, acima de tudo, visualizável. Os princípios que os bardos orais descobriram, à medida que modelavam suas histórias pela citação e recitação, são os mesmos princípios mnemônicos básicos que os psicólogos redescobriram quando começaram a conduzir os primeiros experimentos científicos sobre o assunto na virada do século XX: palavras que rimam são mais fáceis de guardar do que palavras que não rimam; substantivos concretos são mais fáceis de decorar que substantivos abstratos; imagens dinâmicas são mais memoráveis do que imagens estáticas; aliteração ajuda a memória. Um furão de pele listrada dando uma enterrada é uma imagem que gruda mais do que um mustelídeo estampado executando uma atividade atlética.


O autor anônimo de Ad Herennium sugere que o melhor método para recordar a poesia ad verbum é repetir um verso duas ou três vezes antes de tentar vê-lo dentro de uma série de imagens. {40} É mais ou menos o método que Gunther Karsten usa na competição de poema. Ele atribui a cada palavra um ponto numa rota. Mas esse método tem um problema evidente: há muitas palavras que não podem ser visualizadas. Com o que se parece o conectivo “e”? Ou um artigo “o”? Uns dois mil anos atrás, Metrodoro de Escepsis, um contemporâneo de Cícero, ofereceu uma solução ao dilema de tentar ver o invisível. {41} Metrodoro desenvolveu um sistema de imagens-abreviaturas que poderia significar conjunções, artigos e outros conectivos sintáticos. Isso lhe possibilitava memorizar de forma literal qualquer coisa que lesse ou ouvisse. O repertório de símbolos de Metrodoro parece ter sido amplamente usado na Grécia Antiga. O Ad Herennium menciona que “a maioria dos gregos que escreveu sobre memória escolheu listar imagens que correspondessem às muitas palavras de maior uso, de modo que as pessoas que desejassem fixar essas imagens pudessem tê-las à mão sem despender esforço procurando-as”. Embora Gunther não use os símbolos de Metrodoro — infelizmente perdidos na história —, ele criou o próprio dicionário de imagens para cada uma das duzentas palavras mais comuns que não podem ser visualizadas facilmente. “E” é um círculo (“e” é, em alemão, utid, que rima com rimd, “redondo”). O artigo “a” é alguém andando de joelhos (em alemão die, que rima com knie, “joelho”). Quando o poema atinge um ponto final, ele dá uma martelada em um prego nesse local.


A forma de Gunther de criar uma imagem para o inimaginável é muito antiga: visualizar uma palavra com o som parecido, ou um trocadilho, em seu lugar.



O teólogo e matemático inglês do século XIV Thomas Bradwardine, depois escolhido como arcebispo de Canterbury, elevou esse tipo de memorização literal ao seu nível de desenvolvimento mais alto e mais absurdo. Ele descreveu o método de memória sillabarum, ou “memória por sílabas”, que poderia ser usado para memorizar palavras que fossem difíceis de visualizar. O sistema de Bradwardine consistia em quebrar a palavra em sílabas e então criar uma imagem para cada uma baseada em outra palavra que começasse com a mesma sílaba. Por exemplo, se quisermos lembrar a sílaba “ab-”, podemos imaginar um abade. Para “ba-”, pode-se visualizar um atirador de besta ( balistarius' ). {42} A cadeia dessas sílabas, quando reunidas, se torna uma espécie de jogo de rebus. (Poderíamos lembrar o grupo pop sueco Abba como um abade sendo atingido por uma besta.) {43} Esse processo de transformar palavras em imagens envolve uma espécie de recordação por esquecimento: para memorizar uma palavra a partir da sonoridade, o significado é deixado de lado. Bradwardine poderia mesmo traduzir a benção mais piedosa em uma cena ridícula. Para lembrar a sentença básica de um sermão que começa com “Benedictus Dominus qui per”, ele via “São Bento dançando para a esquerda com uma vaca branca de tetas supervermelhas, que carregava uma perdiz, enquanto sua mão direita ou mutilava ou acariciava São Domingos”.



especialistas veem o mundo de forma diferente. Percebem coisas que os não especializados não percebem. Armazenam a informação mais importante e têm uma noção quase automática do que fazer com ela. E o mais importante: experts processam as enormes quantidades de informação que atravessam seus sentidos de modo mais sofisticado. Podem superar uma das limitações mais fundamentais do cérebro: o mágico número sete.



Chunking é um modo de reduzir o número de itens que você tem que guardar na memória aumentando o tamanho de cada um. E a razão por que os números de telefone são quebrados em duas partes mais um código de área e por que os números dos cartões de crédito são divididos em grupos de quatro. E é extremamente relevante em relação à questão de por que é tão comum os experts terem memórias excepcionais. A explicação clássica do chunking envolve a linguagem. Se lhe pedem para memorizar as 19 letras CABEÇAOMBROJOE- LHOPE e você não perceber o que formam, é quase certo de que você vai ter muito trabalho.



Mas quebre as 19 letras em quatro porções — CABEÇA, OMBRO, JOELHO, PÉ —, e a tarefa vai se tornar muito mais fácil. E, se você conhecer a cantiga infantil, o verso “Cabeça, ombro, joelho e pé” pode ser efetivamente tratado como uma única porção. O mesmo acontece com números. A sequência numérica de 12 dígitos 071241110901 é muito difícil de lembrar. Quebre-a em quatro porções — 071, 241, 110, 901 —, e se torna um pouco mais fácil. Agora transforme em duas porções — 07/12/41 e 11/09/01 —, e fica quase impossível esquecer. Você pode até transformar as datas em uma única porção de informação, lembrando-a como “os dois grandes ataques surpresa em solo norte-americano”.


Note que o processo toma uma informação aparentemente sem importância e a reinterpreta à luz de informações já armazenadas de algum modo em nossa memória de longo prazo. Se você não soubesse as datas de Pearl Harbor ou dos atentados do 11 de Setembro, jamais seria capaz de realizar a partição dessa sequência numérica de 12 dígitos. Se você falasse suaíli, e não português, o verso da cantiga infantil seria apenas um amontoado de letras. Em outras palavras, quando se trata de chunking — e, de uma forma mais geral, da nossa memória —, o que já sabemos determina o que somos capazes de aprender.


É isso, é claro, que fazem os experts: usam a memória para ver o mundo de um jeito diferente. Ao longo de muitos anos, acumulam um banco de experiências que modela como eles percebem novas informações.



Os experimentos com xadrez revelam um fato notável sobre a memória e sobre expertise em geral: não lembramos fatos isolados; lembramos coisas dentro de contextos. Um tabuleiro com peças dispostas ao acaso não está inserido dentro de um contexto — não há tabuleiros similares com os quais comparar, nenhum jogo passado que seja semelhante, nenhum meio de aplicar o chunking com significado. Mesmo para o melhor jogador de xadrez do mundo, isso vai ser, essencialmente, ruído.


Em outras palavras, uma grande memória não é simplesmente um subproduto da expertise, mas a essência da expertise.


A monotonia comprime o tempo, a novidade o expande. Você pode se exercitar, ter uma alimentação saudável e viver uma vida longa, mas experienciar uma vida curta. Se passar a vida sentado em um cubículo lidando com a papelada, um dia vai passar sem memória e se fundir com o seguinte... e desaparecer. Por isso, é importante mudar a rotina, passar férias em locais exóticos e ter o máximo possível de experiências novas que possam servir de âncoras para nossa memória. Criar novas memórias estende nosso tempo psicológico e prolonga a percepção de nossa vida.


A vida parece se acelerar quando envelhecemos porque a vida se torna menos memorável.

 


A ideia geral da maioria das técnicas é transformar qualquer coisa aborrecida instalada em nossas memórias em algo vivido, excitante e diferente de tudo que já foi visto, de modo que você não conseguirá esquecer

 

 

Simônides concluiu que qualquer coisa que pudesse ser imaginada poderia ser impressa na memória e mantida em boa ordem, apenas aplicando-se a memória espacial no ato da recordação. Para usar a técnica de Simônides, tudo o que se tem a fazer é converter algo difícil de guardar, ou seja, uma sequência de números, um baralho de cartas, uma lista de compras ou o Paraíso perdido numa série de imagens de impacto e arranjá-las mentalmente dentro de um espaço imaginado, e de repente os itens olvidáveis tornam-se inolvidáveis.



Em outras palavras, a memória natural é o hardware com o qual nascemos. A memória artificial é o software que roda nesse hardware.



Palácios da memória não precisam ser palaciais — nem mesmo edificações. Podem ser caminhos de uma cidade — como eram para S —, estações ao longo de uma via férrea, signos do zodíaco ou até criaturas míticas. Podem ser grandes ou pequenos, espaços internos ou ao ar livre, reais ou imaginários, desde que haja uma ordem que ligue um locus ao próximo e que os loci sejam intimamente familiares. O tetracampeão norte-americano de memória Scott Hagwood usa casas luxuosas que aparecem no Architectural Digest para armazenar suas memórias. Dr. Yip Swee Chooi, o vivaz campeão de memória da Malásia, usou partes do próprio corpo como loci para ajudá-lo a memorizar todas as 56 mil palavras e 1.774 páginas do dicionário Oxford chinês-inglês. Pode haver dúzias, centenas, talvez milhares de palácios, cada um construído para abrigar um conjunto diferente de memórias.


Na Austrália e no sudoeste dos Estados Unidos, os aborígenes e os índios apaches desenvolveram o método dos loci â seu modo. Mas, em vez de usar construções, baseavam-se na topografia local para posicionar as narrativas e as entoavam pela paisagem. Cada outeiro, rocha e riacho adotavam parte da história. “Mito e mapa tornam-se coincidentes”, explica John Foley, antropólogo linguístico da Universidade do Missouri que estuda memória e tradições orais. Uma das trágicas consequências de embutir a narrativa na paisagem é que, quando os nativos tiveram suas terras tomadas pelo governo dos Estados Unidos, perderam não apenas o lar, mas também o folclore.


Apenas para dar um exemplo, se você ficar sozinho por cinco minutos na casa de alguém que você nunca visitou e estiver disposto e curioso, imagine o quanto daquela casa poderá ser fixado na memória durante o breve período. Você poderia descobrir não apenas onde ficam os diferentes cômodos e como uns se conectam aos outros, mas também as dimensões e a decoração, como estão arrumados e onde se encontra cada janela. Sem realmente perceber, você teria lembrado a disposição de centenas de objetos e todos os tipos de dimensões que você nem sequer notou que tinha notado. Se você juntar toda essa informação, terá o equivalente a um curto romance. Mas nunca registramos isso como um feito da memória. Humanos simplesmente se empanturram com informação espacial. O princípio do palácio da memória, continuou, é usar a nossa memória espacial excepcional para estruturar e armazenar informação cuja ordem não surge de forma tão natural


Quanto mais vivida a imagem, maiores as chances de ela ficar cravada no seu locus. Eu estava aprendendo que o que forma único um grande mnemonista é a habilidade de criar essas boas imagens sem erro, de criar na mente uma cena tão diferente de qualquer coisa vista antes que não pode ser esquecida. E fazer tudo muito rápido.


É por isso que Tony Buzan diz a qualquer um que o Campeonato Mundial é menos um teste de memória do que de criatividade.


Formar imagens ajuda a ter uma mente suja. A evolução programou o cérebro para achar duas coisas muito interessantes e, portanto, memoráveis: piadas e sexo — especialmente, ao que parece, piadas sobre sexo.



Mesmo tratados de memória de épocas relativa mente pudicas enfatizam esse ponto. Pedro de Ravena, autor do mais famoso texto sobre memória do século XV, pede perdão aos castos e religiosos antes de revelar “um segredo sobre o qual me tenho (devido à modéstia) silenciado durante muito tempo: se você desejar lembrar com presteza, disponha as imagens das mais belas virgens nos lugares da memória; a memória é maravilhosamente excitada por imagens de mulheres”.



a inefável complexidade da natureza humana: que saco de contradições e que inextricável enigma realmente somos



Isso, mais do que qualquer outra coisa, é o que diferencia os memorizadores de elite dos de segundo escalão: os primeiros abordam a memorização como uma ciência, desenvolvem hipóteses sobre suas limitações, conduzem experimentos e rastreiam dados. “É como desenvolver um dispositivo tecnológico, ou trabalhar em uma teoria científica.", disse certa vez o bicampeão mundial Andi Bell. "Você tem que analisar o que está fazendo."



Atenção é, obviamente, um pré-requisito para a lembrança. De modo geral, quando esquecemos o nome de um novo conhecido é porque estávamos muito ocupados pensando no que iríamos dizer em seguida. Parte da razão de as técnicas como imagética visual e palácio da memória funcionarem tão bem é o fato de reforçarem um grau de atenção e consciência que normalmente nos falta. Não podemos criar a imagem de uma palavra, um número ou o nome de uma pessoa sem nos determos a ela. E não podemos nos deter a alguma coisa sem torná-la interessante.


Ed, que tinha adquirido o hábito de se referir a mim como “filho”, “jovem” e “Herr Foer”, insistia que a cura para a minha distração residia em um upgrade do meu equipamento. Todos os mnemonistas sérios usam protetores de ouvido. Certos competidores mais sérios usam antolhos para limitar o campo de visão e eliminar distrações periféricas. “Acho que são ridículos, mas, no seu caso, seriam um bom investimento”, disse Ed em um dos seus acompanhamentos por telefone, duas vezes por semana. Naquela tarde, fui a uma loja de ferragens e comprei um par de protetores auriculares industriais e óculos de segurança laboratoriais de plástico. Pintei-os com spray de tinta preta e então furei um pequeno orifício em cada lente. Daí em diante, sempre os usava no meu treinamento.


citação do venerável mestre de artes marciais Bruce

Bruce Lee, para me servir de inspiração: “Não há limites. Há tetos, mas você não deve permanecer sob eles, deve ultrapassá-los. Se isso te matar, isso te matou.”



Se um dos objetivos da educação é criar pessoas questionadoras e cultas, então é preciso dar aos alunos os pontos de referência mais básicos para que os guiem ao longo de uma vida de aprendizagem. E se, como o mestre do século XII Hugo de São Vítor colocava, “toda a utilidade da educação reside apenas na sua memória”, então deveríamos lhes dar as melhores ferramentas disponíveis para guardar a educação na memória.


A memória precisa ser ensinada como uma habilidade do mesmo modo que flexibilidade e força são ensinadas para promover a saúde física e o bem-estar — sustenta Buzan, que com frequência soa como um defensor da antiga psicologia das faculdades. — Os alunos precisam aprender a aprender. Primeiro devem ser ensinados como aprender e então o que aprender.


“Em nossa grosseira incompreensão sobre a função da memória, pensamos que a memória é operada primariamente pela repetição. Em outras palavras, você empurra para dentro da cabeça até ela ficar empanturrada com os fatos. O que não se percebia era que a memória é primariamente um processo imaginativo. Na verdade, aprendizagem, memória e criatividade são o mesmo processo fundamental direcionado para focos diferentes”, diz Buzan. “A arte e a ciência da memória têm a ver com desenvolver a capacidade de criar rapidamente imagens que conectem ideias díspares. Criar é a habilidade de formar conexões similares entre imagens díspares e de elaborar algo novo para lançá-lo ao futuro de modo que se torne um poema, uma construção, uma dança, um romance. A criatividade é, de certo modo, a memória do futuro.” Se a essência da criatividade é conectar fatos e ideias díspares, então quanto mais facilidade tivermos em fazer associações e mais fatos e ideias tivermos à nossa disposição, melhor seremos em criar novas ideias. Como Buzan gosta de assinalar, Mnemosine, a deusa da memória, era a mãe das musas.


Para inventar, em primeiro lugar, é necessário um inventário próprio, um banco de ideias existentes em que se basear. Não apenas um inventário, mas um inventário indexado. E preciso um jeito de encontrar a informação certa no momento certo.



Essa é, em última análise, a principal utilidade da arte da memória. Não é apenas uma ferramenta de gravação, mas também um instrumento de invenção e de composição. “A percepção de que compor dependia de uma memória bem- -equipada e seguramente acessível formava a base da educação retórica na Antiguidade”, escreve Mary Carruthers. O cérebro é organizado como os escaninhos modernos, com fatos, citações e ideias mais importantes alojados em cubículos mnemônicos bem-classificados, onde nunca serão perdidos e de onde podem ser recombinados e relacionados na hora.


é preciso ter conhecimento para obter conhecimento


memória e inteligência de fato parecem caminhar de mãos dadas, assim como boa forma física e disposição atlética. Há um circuito de feedback entre as duas. Quanto mais intimamente cada nova informação puder ser entrelaçada com a rede de informações que já conhecemos, maior será a probabilidade de ser lembrada. Pessoas que têm mais associações para prender suas memórias são mais propensas a lembrar coisas novas, que, por sua vez, farão com que conheçam mais e possam aprender mais.



uma semana antes do campeonato, exatamente no momento em que eu queria estar treinando mais, Ed me falou para parar. Os AMs sempre dão uma pausa no treinamento uma semana antes das competições para fazer uma limpeza de férias dos seus palácios da memória. Eles os percorrem e mentalmente eliminam quaisquer imagens que tenham perdurado, pois, no calor de uma competição, a última coisa que desejam é lembrar por engano algo que memorizaram na semana anterior.


um último conselho: “Tudo o que você tem que fazer é saborear as imagens e realmente se deleitar com elas. Desde que esteja se surpreendendo com a boa natureza vivida delas, você estará bem. De modo algum fique preocupado. Pegue leve, ignore a oposição, divirta-se. Já estou orgulhoso de você. E, lembre-se, garotas fazem cicatrizes, mas a glória dura para sempre.”


U MA MORENA ALTA , usando um vestido de verão, entrou no palco e se apresentou. “Oi, eu sou Diana Marie Anderson. Nasci em 22 de dezembro de 1967, em Ithaca, Nova York, 14.850. O número do meu trabalho, mas, por favor, não ligue pra lá, é 929-244-6735, ramal 14. Tenho um bicho de estimação, o nome dela é Karma; ela é um labrador amarelo. Tenho alguns hobbies: assistir a filmes, andar de bicicleta e tricotar. Meu carro favorito é o Ford Modelo T de 1927, cor preta. Gosto de pizza, jujubas e sorvete de menta com chocolate. Enquanto ela falava, Ram, Chester, Maurice e eu mantínhamos nossos olhos fechados, pintando com vigor imagens em nossos palácios da memória. A data de nascimento de Diana, 22/12/67, tornou-se um peso de uma tonelada (12) esmagando uma freira (22) enquanto ela tomava um milk-shake de frutas (67), que eu coloquei em uma banheira independente, de pés de garras, no banheiro do meu palácio vitoriano. Quanto ao local de nascimento e código postal, fui ao closet e imaginei um pneu de caminhão enorme (14) rolando na beira de um dos famosos desfiladeiros de Íta e aterrissando em cima de um casal de rapazes (850). Outros quatro convidados do chá subiram ao palco e recitaram biografias igualmente exaustivas.


Nós somos apenas um monte de hábitos modelados por nossas memórias. E na extensão em que controlamos nossa vida, nós o fazemos alterando gradualmente nossos hábitos, ou seja, as redes das nossas memórias. Sem brincadeira, invenção, insight ou arte não foram jamais produzidos por uma memória externa. Pelo menos, não até agora. Nossa capacidade de encontrar humor nesse mundo, de fazer conexões entre noções antes desconexas, de criar novas ideias, de partilhar uma cultura comum, todos esses atos essencialmente humanos dependem da memória. Agora, mais do que nunca, quando o papel da memória na nossa cultura se perde a um ritmo mais rápido do que em qualquer outro momento, precisamos cultivar a capacidade de lembrar. As memórias fazem de nós o que somos. São a sede de nossos valores e a fonte do nosso caráter. Competir para ver quem memoriza mais páginas de poesia parece ultrapassar a questão, mas é uma questão de resistir contra o esquecimento e tomar posse de capacidades primordiais das quais muitos de nós se tornaram alienados.



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7 comentários:

  1. Deveríamos manter fichamentos escritos à mão de todos os livros, HQs e filmes que já vimos!

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    1. eu tento fazer isso, em parte, com os blogs
      pelo menos com as obras mais relevantes

      abs!

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    2. Uma ideia seriam arquivos de áudio. Já pensou se tivéssemos resumo, em áudio, de tudo que consumimos? Será prático, aliás, para registrar e compendiar.
      Blog ajuda. Mas fichar algo, formalmente, como aprendemos na escola, naquelas fichinhas, é algo com método, racional.

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    3. em audio - pode ser viavel (uso de gravador + uma planilha excel para listar esse conteudo)
      https://www.scantsa.com/2019/01/gravador-digital.html

      em papel - viavel em fichas pautadas de papel (sistema mais tradicional) ou software (Anki)

      opção mista - post blog (fichamento) + arquivo de audio anexado ao post + planilha excel

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    4. p.s: olavo de carvalho usava grifos em livros

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    5. Conferi aqui e notei que ainda se vende bastante ficha pautada e ficheiros! Muita gente deve cultivar esse hábito então.

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    6. o pessoal que estuda pra vestibular usa bastante

      essa ficha também faz parte de um antigo sistema de banco de dados para cadastro manual de endereços, fornecedores etc

      até bibliotecas usavam no passado para "indexar" títulos

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