[Livro] A corrida secreta de Lance Armstrong (2012)/ Tyler Hamilton

 


 Nos Bastidores do Tour de France: Doping, Armações e Tudo o Que For Preciso Para Vencer


“Os testes são fáceis de burlar”, disse ele. “Estamos muito à frente dos testes. Eles têm os médicos deles e nós temos os nossos, e os nossos são melhores. Mais bem pagos, com certeza. Além do mais, a UCI [União Ciclística Internacional, o órgão regulador do esporte] nunca iria querer pegar alguns caras. Por que fariam isso? Iria lhes custar muito dinheiro.”

Durante minha carreira, jornalistas frequentemente usavam o termo “corrida armamentista” para descrever a relação entre os fiscais de doping e os atletas. Isso não estava totalmente certo, pois dava a entender que os fiscais tinham alguma chance de ganhar. Para nós, não era uma corrida. Estava mais para um grande jogo de esconde-esconde, disputado em uma floresta, com vários bons lugares para se esconder e muitas regras que favorecem aqueles que vão se esconder. Portanto, era assim que enganávamos os fiscais: Dica 1: use um relógio. Dica 2: tenha um celular à mão. Dica 3: conheça seu “período de irradiação”: por quanto tempo acusaria positivo após tomar a substância.

Larguei pela rampa e cortei a primeira curva a toda velocidade, com Carmichael seguindo num carro da equipe. Continuei forçando, chegando ao limite e me mantendo nele. Consigo perceber que estou no limite quando posso sentir um pouco do gosto de sangue na boca, e foi assim que permaneci, bem no limite.

 Você se força até o limite absoluto – quando seus músculos estão gritando, quando seu coração está prestes a explodir, quando dá para sentir o ácido lático transpirando pelo rosto e pelas mãos – e, então, você força a si mesmo um pouco além, depois mais um pouco, e, de repente, coisas começam a acontecer. Às vezes, explodimos; outras vezes, você alcança o limite e não consegue passar dele. Porém, algumas vezes, você o ultrapassa, e atinge um ponto em que a dor aumenta tanto que ela desaparece por completo. Sei que isso parece um pouco zen, mas é assim que eu sinto.
A dor vem em diferentes sabores. Este era um novo sabor – mais áspero, ofuscante; se tivesse uma cor, seria um verde elétrico. Passar por cima de um pedregulho causava um rompante de agonia que corria das pontas dos meus dedos até o topo da minha cabeça; não conseguia decidir se vomitava ou gritava. Mas aí que está: se aguentar os primeiros dez minutos, então dá para aguentar mais. O tempo para de importar. De uma maneira estranha, o caos e a ansiedade da prova eram reconfortantes. Forçava ainda mais, usando a dor dos meus músculos para me distrair da dor em minha clavícula.
 Se me visse pela rua, nem chegaria perto de me destacar. Mas em situações onde as coisas são levadas aos limites mental e físico, eu tenho um dom. Consigo aguentar qualquer coisa. Quanto mais difíceis as coisas ficam, melhor eu as faço. Não sou nenhum masoquista, pois tenho um método. Eis o segredo: não se pode bloquear a dor. É preciso abraçá-la.

Eis um número interessante: mil dias. É mais ou menos o número de dias entre o dia em que me tornei um profissional e o dia em que usei doping pela primeira vez. Conversar com outros ciclistas dessa era e ler suas histórias, parece ser um padrão: aqueles de nós que usaram doping, na maioria das vezes, começaram a partir do terceiro ano. Primeiro ano, recém-profissional, animado por estar lá, o calouro está cheio de esperança. Segundo ano, cai-se na real. Terceiro ano, clareza – a encruzilhada. Sim ou não. Dentro ou fora. Todo mundo tem seus mil dias; todo mundo tem sua escolha.

 “conservação de energia”, e esse era um ponto essencial para sermos bons ciclistas. As regras eram simples: ficar de pé o mínimo possível, dormir o máximo possível. George era o rei do “ficar de bobeira”. Dias inteiros se passavam e ele só ficava na vertical quando tinha de comer ou treinar.

Eu tinha muito que aprender. Até então, treinava como a maioria dos ciclistas das antigas – ou seja, de acordo com minha intuição. Ah, eu fazia intervalos e contava as horas, mas não era muito científico a respeito. As provas disso podem ser vistas nos meus diários, nos quais a maioria dos dias era marcada por um único número: quantas horas eu havia treinado – quanto mais, melhor. Isso acabou no instante em que pisei em Nice. Lance e Ferrari me mostraram que havia mais variáveis do que eu imaginava, e que todas elas eram importantes: medida de força, cadência, intervalos, zonas, joules, ácido lático e, é claro, hematócrito.

 Cada corrida era um problema matemático: um conjunto de números precisamente mapeados que precisávamos atingir – o que parece fácil, mas, na verdade, eram incrivelmente difíceis de serem alcançados. Uma coisa é você sair para pedalar por seis horas; outra é pedalar por seis horas, seguindo um programa de potência, cadências – especialmente quando tais potências e cadências estão ajustadas para fazê-lo ultrapassar os mais absurdos limites de suas habilidades. Com o suporte de doses regulares de Edgar e de ovos vermelhos, treinávamos como nunca achei ser possível: retornos ao lar e quedas inconscientes na cama, exausto até o último fio de cabelo, dia após dia.

 Ferrari nos mostrou uma maneira de misturar Andriol em azeite de oliva; ele colocava em um vidro escuro, com um conta-gotas, para pequenos estímulos. Lembro-me de ter pegado um pouco do óleo de Lance durante uma corrida, uma vez: ele ergueu o conta-gotas e eu abri minha boca como se fosse um bebê-passarinho. A partir de uma sugestão de del Moral, experimentei um pouco de hormônio do crescimento em uma etapa do treinamento – meia dúzia de injeções, por vinte dias –, mas fez minhas pernas parecerem pesadas e inchadas, e me deixou um caco, por isso, parei.

 Na posição de ciclista, com o passar do tempo, você desenvolve a capacidade de manter uma fisionomia impassível. Não importa quão extrema seja a sensação que esteja sentindo – não importa o quão perto esteja de entrar em colapso – você faz de tudo para mascarar. Isso é importante numa corrida, quando esconder sua verdadeira situação de seu oponente é uma chave para o sucesso, já que isso desencoraja possíveis ataques. Está sentindo uma dor paralisante? Demonstre estar relaxado, até mesmo entediado. Não consegue respirar? Feche a boca. Prestes a morrer? Sorria.

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6 comentários:

  1. Grande ciclista, grande filho da puta. Mesmo assim, texto bom de ler.

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    1. todo esporte está cheio de filhos de meretrizes

      valeu

      abs!

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  2. "Prestes a morrer? Sorria"

    Eu ri, apesar de não ser um momento cômico. Gostei das citações.

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    1. eu também.
      não dava nada por esse livro, mas foi bem legal

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  3. Scant,
    São muitos "hacks" na vida. O perico é encurtar a vida também!

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    1. sem os "hacks" minha vida seria um tédio e olha que ainda sobra muito tempo livre

      abs!

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Memento mori...carpe diem!